Recentemente, me lembrei de uma conversa que tive com um colega de trabalho, alguns anos atrás, sobre aposentadoria. Meu colega acreditava que, ao recolher contribuições para o INSS, estava “pagando” por sua própria aposentadoria, pois o valor recolhido ficaria guardado numa espécie de poupança, e seria revertido nas parcelas mensais que ele receberia do Estado quando não estivesse mais na atividade profissional. Como percebo que muitas pessoas pensam como ele, creio que caibam algumas explicações sobre o funcionamento da Seguridade Social no Brasil.
A Seguridade Social é definida como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social”, logo no artigo primeiro da Lei Nacional N. 8.212 de 1991 (lei que organiza a Seguridade Social). Então, logo de começo, podemos ver que a Seguridade Social é um gênero de ações do Estado, que possui três espécies diferentes: Saúde, Previdência Social e Assistência Social. Para aclarar as coisas, vamos às definições legais, completadas com exemplos singelos:
Saúde: a própria lei define como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Em um curto (curtíssimo) resumo, é o SUS.
Previdência Social: a mesma lei diz que a “Previdência Social tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente”. Aqui, temos as aposentadorias (por idade, por invalidez e por tempo de serviço), as pensões por morte, o seguro-desemprego, o auxílio-doença e o auxílio-reclusão (sim, o auxílio-reclusão). Veja que falamos de ações do Estado que são custeadas de formas específicas pelos beneficiários, com as chamadas “contribuições” (ou seja, quem não recolheu contribuição quando estava trabalhando, depois de preso, não recebe auxílio-reclusão).
Assistência Social: por fim, a lei informa que a “Assistência Social é a política social que provê o atendimento das necessidades básicas, traduzidas em proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, independentemente de contribuição à Seguridade Social”. Como exemplos, temos os benefícios pagos a pessoas deficientes e idosos, e os projetos de enfrentamento da pobreza (como auxílios e benefícios). Ao contrário da Previdência, a Assistência Social não demanda recolhimento para que aquisição da condição de beneficiário.
Agora que já falamos um pouco sobre a Seguridade Social, vamos parar no ponto nevrálgico da minha conversa com meu colega: o financiamento do sistema, que está descrito a partir do artigo 10 da Lei N. 8.212/91.
Como gênero, a Seguridade Social é financiada com o dinheiro dos pagadores de impostos (a lei usa do eufemismo “por toda sociedade, de forma direta e indireta”). A maioria das pessoas já relaciona, mesmo, o financiamento do SUS e dos benefícios ao dinheiro de impostos; a treta começa quando estamos falando da Previdência Social (ou seja, quando estamos discutindo o que você realmente está pagando, quando pensa que está pagando pela sua aposentadoria).
As fontes possíveis são múltiplas, mas, analisando os institutos de previdência que existem mundo afora, vemos basicamente dois regimes previdenciários: o de Capitalização e o de Repartição.
O Regime de Capitalização é a criação de uma espécie de “conta” para cada contribuinte, que vai depositando valores ao longo da vida profissional; os valores são investidos pelo administrador do sistema, e a soma do principal e dos rendimentos garante o pagamento da aposentadoria para o beneficiário, obedecidas as determinações legais – como um plano de previdência privada. Bem, esse não é o regime adotado no Brasil, destruindo a ilusão do meu colega.
O Regime de Repartição é aquele em que todas as contribuições (não só dos trabalhadores, mas dos empregadores também – e não estamos falando dos donos dos negócios “contribuírem” para se aposentarem um dia; estamos dizendo que as pessoas jurídicas pagam, mesmo sabendo que não faz sentido pensar que uma indústria ou uma loja um dia irá se aposentar), vão para uma espécie de “conta geral”, destinada a cobrir todos os custos previdenciários presentes (as aposentadorias, as pensões, as perdas com processos judiciais, a administração do sistema etc). Ou seja, quem trabalha paga a aposentadoria de quem já trabalhou. Reputam esse modelo como “solidário e universal”. É, precisamente, o regime previdenciário que submete a maior parte dos trabalhadores no Brasil.
Bem, e por que a maior parte, e não todos? Como o Estado é um cavalo-de-Tróia dentro de um cavalo-de-Tróia, não seria o Estado sem surpresa, não é mesmo? O que descrevemos acima são as normas gerais do sistema, o que se chama de Regime Geral de Previdência Social, mas sabemos que as normas gerais são para as pessoas, digamos, gerais. Há casos e casos, e as exceções confirmam a regra. Os servidores públicos, por exemplo, estão submetidos ao Regime Próprio de Previdência Social (que difere do Geral, notadamente, na média de valor dos benefícios pagos, mas também é de Repartição); os militares, até recentemente, não recolhiam contribuição para aposentadoria, apenas para pensões. E, com tantas exceções, dá pra entender por que aquela pessoa que foi militar sete anos, depois trabalhou em uma empresa por mais oito, até passar num concurso e trabalhar no serviço público por dez, quando resolveu trabalhar como profissional liberal, vai ter tanta dificuldade para se aposentar.
É… falamos bastante, e quase saímos do tema. O ponto é: você não está deixando seu dinheiro na mão do Estado para ter uma aposentadoria confortável, irmão. O rico resultado dos seus esforços entra por uma porta e sai pela outra, sua contribuição está pagando a aposentadoria de quem já está inativo. Então, se a minha aposentadoria não está garantida com o dinheiro que o Estado tirou de mim, o que garante que eu vá me aposentar? O lastro da promessa é palavra de político, amigão.
De certa forma, não é malícia nem burrice, mas sim de inocência. O sistema começou a existir em 1923, com a Lei Eloy Chaves, mas mudou muito desde então (governos moldando o Estado ao seu interesse, ops, ideologia? nunca nem vi…), em quando foi criado, fazia todo sentido ter Regime de Repartição. Pense bem, o Brasil era um país de população jovem e com expectativa de vida bem mais baixa que a atual, o que garantia uma certa “sustentabilidade” ao método – todo ano muita gente entrava no sistema, quem se aposentava não tinha uma vida longa na atividade, e muitos sequer chegavam a ela. Mas, atualmente, o sistema parece uma pirâmide (atenção, Governo, não estamos dizendo que seja pirâmide, estamos dizendo que tem uma coisa que parece de pirâmide, está explicado, então, não precisa prender ninguém aqui!), em que o pagamento de quem está na atividade remunera quem está na inatividade.
E calma, que piora. Por duas coisas.
A primeira, é o fato do sistema ser deficitário. Já ouviu falar em “rombo da Previdência”? Pois é. Todo ano, sobra aposentadoria/pensão pra pagar, e falta recurso. As causas são variadas, mas, principalmente, três: sonegação fiscal(…); pouca gente trabalhando de carteira assinada (ou seja, muita gente fora do sistema); e o fato do sistema ser um saco-sem-fundo mesmo. Não encontramos um valor fidedigno e atualizado para o rombo, mas fontes variadas (encontradas no Google, procura lá) informaram até R$ 363 bilhões (sim, bilhões) para 2023.
A segunda, é um negócio chamado Desvinculação de Receitas da União (para os íntimos, DRU). Se trata de um mecanismo legal criado em meados da década de 1990, e que permite ao Governo Federal usar livremente um percentual dos tributos federais vinculados a fundos e despesas. Se o dinheiro não dava antes, então… Políticos e orçamento. Ressaltamos aqui como fazer uma lei para tirar dinheiro das pessoas com um objetivo e depois fazer outra lei para poder gastar esse dinheiro com outra coisa é plenamente legal, democrático e republicano.
Se você leu até aqui, posso dizer que agora é com você. Defensores do sistema de Seguridade Social vão aparecer de vez em quando, alguns na base da ideologia, dizendo que “o Brasil precisa do sistema, para garantir a aposentadoria dos menos favorecidos”, e outros simplesmente iludidos, pensando que estão pagando hoje por um benefício que terão amanhã. Quanto ao meu colega, deixou a confiança no Leviatã de lado e está poupando e investindo para o próprio futuro. Hoje mesmo tivemos uma boa conversa sobre a estratégia de aquisição de criptomoedas. Afinal, “o pessimista reclama do vento, o otimista espera que ele mude, o realista ajusta as velas”.