ESSA TAL DE LEI KANDIR…

Quando os assuntos que envolvem tributos estão na mídia, algumas palavras e termos são notados de forma recorrente. Dentre estes, há os que fazem algum sentido para a população em geral, porque seu uso comum dá uma noção do que são (como “contribuinte”, “taxa”, “débito”), e outros que, embora eventualmente figurados, são de definição menos precisa, ou mesmo desconhecidos. No segundo grupo está o tema do presente artigo, a Lei Kandir.

Mas, afinal o que é essa tal de Lei Kandir?

“Lei Kandir” é a expressão pela qual ficou popularmente conhecida a Lei Complementar N. 87/1996, que “dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências”. “Kandir”, no caso, remete à pessoa de Antônio Kandir, engenheiro, economista e político brasileiro, que é considerado “pai” da lei.

Então, a Lei Kandir foi criada com o objetivo de regular alguns aspectos do tratamento tributário da circulação de mercadorias e serviços, que é objeto do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O imposto é estadual, mas, como sua previsão decorre do artigo 155, II, da Constituição Federal, a lei é, digamos, “legal”.

Sua criação tem muito a ver com o momento econômico que o Brasil atravessava naquele momento (meados da década de 1990). Antes do Plano Real (1994), o Brasil passou por períodos de hiperinflação (semelhante ao que acontece atualmente na Argentina) e sua moeda, o Cruzeiro (logo antes, Cruzeiro Real) valia pouco no câmbio (um Dólar dos Estados Unidos valia milhares de Cruzeiros Reais). Com o Plano Real, o Brasil passou a ter uma moeda mais “forte” ante o Dólar e outras moedas, e a infração foi controlada; por outro lado, os produtos brasileiros de exportação ficaram “caros”, porque deixou de ser tão atrativo para o exportador vender em dólares e converter em moeda nacional. Parece um raciocínio bobo, mas não é. Os usuários de câmbio sempre procuram moedas mais fortes para comprar, como forma de proteção contra imprevistos (Bitcoin?), e os exportadores passaram a “preferir” o Real ao Dólar (em alguns dias, R$1,00 chegou a valer mais que US$1,00). Mas os compradores externos não tinham tantos reais disponíveis, ou não queriam fazer contratos em reais, e, nos preços colocados, pagando em Dólar, compravam menos.

O Governo Federal, então, decidiu tirar impostos, para os produtos ficarem mais baratos (sim, eles sabem o que acontece se não tiver imposto). E foi o que fez a Lei Kandir, quando, no seu artigo 3º, II, dispôs que o ICMS não incide sobre “operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços”. Ou seja, as mercadorias agrícolas, pecuárias e minerais (não só elas, a lei é longa, mas são os principais produtos) destinadas à exportação, ficaram isentas de ICMS.

Isso gerou duas consequências.

A primeira foi o Brasil ter optado por se posicionar, de fato, como um grande exportador de commodities, porque se tornou muito competitivo plantar, criar gado e explorar minérios para exportação. Via de consequência, a indústria nacional lentamente deixou de crescer, porque os produtos elaborados pagam ICMS, enquanto os primários e semi-elaborados, não; então, “vamos vender antes de industrializar, e pagar menos imposto, que é mais negócio” .

A segunda foi choro e ranger de dentes nos Estados, porque, do dia para a noite, o Governo Federal tirou uma de suas principais fontes de financiamento. Estima-se que foram bilhões de reais em perdas, e os políticos venderam aos seus governados a ideia de que a Saúde, a Educação e a Segurança ficaram prejudicados por falta do dinheiro do ICMS (e os Municípios também, porque recebem um percentual rateado da arrecadação estadual, via Transferências Constitucionais). Os Estados entraram na Justiça (no Supremo Tribunal Federal), e, como resultado da discussão jurídica e política, foi criada a Lei Complementar N. 176/2020, que instituiu transferência de cinquenta e oito bilhões de reais da União para Estados e Municípios, para compensar as “perdas” da Lei Kandir. Fala-se em “pagar” esses valores com dinheiro arrecadado em privatizações, entre outras coisas.

Bem… agora que você já sabe direitinho o que é a Lei Kandir e como funciona, vamos tirar algumas lições do caso.

A primeira: quando o governo quer, ele “zera” os impostos. O mais interessante é que o Governo Federal poderia ter retirado a cobrança do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), mas não, esta continua “zerada” basicamente apenas na Zona França de Manaus. O ICMS é estadual, então, o Governo Federal mexeu nos cofrinhos dos Estados, mas o seu, o seu, mesmo, deixou bem guardado. Se precisar cortar alguma coisa de alguém, vamos cortar o do coleguinha.

A segunda: mexa no bolso do político, e ele vai chiar. Alguém acha que os governadores fizeram tanto barulho, ao ponto de irem até o Supremo, porque estavam pensando na qualidade da Saúde, da Educação, da Segurança, da Moradia e de todas aquelas outras “coisas grátis” bem caras que existem no “Welfare State”? Hum… não. Eles queriam é administrar um orçamento gordinho, mesmo.

A terceira: políticos sempre se acertam no final. Confie em mim, quando o dinheiro começar a entrar, os políticos que receberem, os atuais, vão cultuar o Governo Federal por “estar fazendo justiça”. Se fossem sinceramente preocupados com os serviços “grátis” que já citei, pelo menos diriam algo como “o valor da perda será indenizado, mas as vidas perdidas porque a Saúde perdeu qualidade em 1998 ou 1999, não”.

Enfim… Que o Estado é igual a casar e morar com a sogra (ou seja, uma coisa que não tem como dar certo), já sabemos. Este pequeno estudo de caso apenas corrobora isto, e nos mostra, mais uma vez, para onde vai o dinheiro dos “contribuintes” (o nosso). Com Lei Kandir ou sem Lei Kandir, nossa alternativa final, no Estado, é sempre pagar.

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